1. contexto histórico-político, cultural e literário do autor






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fecha de publicación20.09.2015
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O Recado do Morro

Guimarães Rosa


1. contexto histórico-político, cultural e literário do autor
1.1. contexto histórico-político
A década de 1950 foi marcada pela agitação política em sua primeira metade e pelo franco crescimento econômico nos anos restantes. Particularmente, o ano de 1954 marca o ápice da conturbação política pelo suicídio do então presidente Getúlio Vargas, evento acompanhado pela sucessão de presidentes no posto e a ameaça de intervenção militar. Em 1955, assume a presidência o mineiro Juscelino Kubitscheck, responsável por um forte crescimento econômico do país calcado no seu plano de metas “distribuídas em seis grupos: energia, transporte, alimentação, indústria de base, educação e a ‘meta-síntese’, a construção de Brasília” (MARANHÃO, 1991: 266). O sucesso do programa é “inegável, tanto na implantação de bens de consumo durável (...) quanto no amplo desenvolvimento da siderurgia e outros ramos do setor de base. O crescimento do setor energético foi bastante intenso” (idem). O Governo de JK seria substituído por Jânio Quadros e João Goulart em 1960, até o fatídico golpe militar de 1964.

O desenvolvimento atingido no Plano de Metas propiciou melhorias na vida da população, inclusive de renda mais baixa e de locais periféricos. O interior do país ganhava assim mais notoriedade e atenção por parte da política (data desta época, por exemplo, a criação da SUDENE), sendo a literatura regionalista uma bandeira e o retrato do sertão por Guimarães Rosa suas cores mais vivas.
1.2. Contexto cultural e literário
Guimarães Rosa está inserido na chamada terceira fase do Modernismo brasileiro, também conhecida como “Geração de 45”, ainda que esta delimitação seja meramente acadêmica e pouco flexível, como salienta Candido (CANDIDO, s/d: 30). Trata-se de uma época hermética da literatura brasileira, marcada pela intelectualização e diversificação da produção literária, com o avanço da crítica, da crônica e do teatro, não numericamente, mas em valores qualitativos.

As décadas de 40 e 50 presenciaram o crescimento da prosa, depois de dois decênios de predominância da poesia. Neste âmbito, os dois grandes nomes foram Clarice Lispector e Guimarães Rosa, responsáveis pela reinvenção da linguagem e por um novo fôlego ao romance.

Alfredo Bosi caracteriza a produção literária a partir da década de 30 através do “grau crescente de tensão entre o ‘herói’ e o seu mundo” (BOSI, 1995: 441), fugindo do esquema tradicional que divide as obras entre o romance psicológico e regionalista. De acordo com Bosi, tanto Clarice quanto Guimarães se enquadram no grau máximo de tensão, em que o herói ultrapassa o conflito através da transformação mítica ou metafísica da realidade (idem, 442). Tal definição se encaixa perfeitamente em O recado do morro, já que o conto prima justamente pelo transcendental e mítico para sua narrativa.
2. localização do texto na produção do autor
O conto “O recado do morro” foi publicado originalmente em 1956, dentro da coletânea Corpo de Baile. O livro, lançado no mesmo ano do romance Grande Sertão: veredas, marca a maturidade do autor, situando-o como um dos maiores escritores da literatura brasileira pela originalidade, profundidade e força criadora (CANDIDO, s/d: 31). A partir da terceira edição, em 1964, Corpo de Baile passou a ser editado em três livros separados: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá no Pinhém, onde se encontra atualmente “O recado do morro”, e Noites do Sertão. Trata-se do bloco central de sua obra, que confirma de modo triunfal a literatura nova que despontava com Sagarana (idem, 365).

3. enredo
‘O recado do morro’ é a estória de uma canção a formar-se. Uma revelação, captada não pelo interessado e destinatário, mas por um marginal da razão, e veiculada e aumentada por outros seres não reflexivos, não-escravos ainda do intelecto: um menino, dois fracos de mente, dois alucinados – e, enfim, por um artista; que, na síntese artística, plasma-a em canção, do mesmo modo perfazendo, plena, a revelação inicial (ROSA, 1984).
O conto “O recado do morro” se inicia com a expedição pelo sertão mineiro de um grupo formado por Pedro Orósio, rapaz namorador, seo Jujuca, fazendeiro de gado, Frei Sinfrão, Ivo, que tangia os burros cargueiros, e seo Alquiste ou Olquiste, pesquisador estrangeiro. Pedro Orósio era odiado por muitos dos homens da região – incluindo Ivo – já que causava a paixão de todas as moças.

No caminho ao redor do Morro da Graça, o grupo se encontra com um ermitão local chamado Gorgulho, que passa a acompanhar a expedição. O velho, tido como maluco, conta sobre um suposto recado que o morro teria lhe passado, uma mensagem confusa que ninguém consegue compreender.

Gorgulho se separa do grupo para visitar o irmão, enquanto a expedição é interrompida numa fazenda. Lá, surge a figura de Catraz, o irmão de Gorgulho, que relata para o menino Joãozezim o recado do morro que ouvira do irmão. Ainda na fazenda, o garoto dá continuidade à mensagem, contando-a para um ajudante da fazenda vizinha, o menino de recados chamado Guegué.

O grupo inicia a jornada de volta ao ponto de partida, acompanhado do ajudante. No caminho, Pedro e Guegué encontram um homem nu, conhecido por Santos-Óleos, que proclama o fim do mundo. Impressionado, Guegué acaba por passar ao homem a história do recado que o morro dera.

Alguns dias depois da expedição aconteceria uma grande festa nos sítios. No sábado da véspera, a vila é surpreendida pela invasão de Santos-Óleos a missa, para proclamação do fim do mundo, calcado agora no recado que o louco recebera. Depois de contornada a situação, Pedro Orósio e Laudelim, um amigo artista, conversam com o Coletor, que se impressionara com as palavras de Santos-Óleos e passou a repeti-las, dando seqüência ao recado.

Na festa de domingo, Laudelim apresenta uma composição sua, justamente o recado do morro, agora transformado em canção. Ao mesmo tempo, Ivo e mais seis homens estão prontos para pôr em prática o plano de assassinar Pedro Orósio, motivados pela inveja. Pedro, contudo, tomando a canção como um presságio e enfim compreendendo o recado, consegue escapar da morte, derrota os adversários e foge.
4. personagens
As personagens da novela “O recado do morro” podem ser divididas em dois grupos: aquelas que atuam de maneira positiva em relação ao protagonista Pedro Orósio e os antagonistas deste, que conspiram contra ele.

As personagens a favor de Pedro Orósio são as responsáveis pela propagação do recado, isto é, são as transmissoras da mensagem emitida pelo Morro da Garça, a qual permitirá que Pedro saiba antecipadamente da traição. E não é por acaso que estas personagens são pessoas desligadas do plano racional, entes dotados de uma crença ilimitada, sem barreiras lógicas. Somente seres isentos dessa noção do real poderiam crer num morro que envia recados.

O ciclo tem início com Malaquias, homônimo do profeta bíblico cujo nome significa “mensageiro de Deus”, também chamado de Gorgulho em referência ao seu orgulho, às pedrinhas e cascalhos que recebem esse nome e também à caruncho, que vive dentro dos grãos. Malaquias vive numa “lapa, entre barrancos e grotas – uma urubuquara – casa dos urubus, uns lugares com pedreiras.” (ROSA, 2001: 37) sendo, portanto, um ser estreitamente ligado à natureza, que fugiu do convívio com a sociedade para isolar-se completamente. Vemos que o ermitão Gorgulho é tipo muito propício para portador inicial da mensagem devido a essa sua identificação com o mundo natural, já que se aparenta a ele e, mesmo surdo, é o único capaz de ouvir “o recado da grande pedra-pirâmide-esfinge” (MACHADO, 1976: 99).

Zacarias, outro ermitão, escuta as palavras do irmão Malaquias quando ele vai visitá-lo. Malaquias possui outros nomes: Catraz (cá traz) ou ainda Qualhacôco, “que transmite a mensagem ao efetuar em sua mente (popularmente, côco) uma nova aglomeração de partículas dispersas (qualha) do recado, (...)”. (MACHADO, 1976: 99). Seu nome também remete à Bíblia, Malaquias e Zacarias foram os dois últimos profetas do Velho Testamento. Por essa razão, temos a atitude radical destas personagens que se apartam do mundo humano para melhor conceber as revelações de Deus.

Catraz conta a profecia ao menino Joãozézim, que por sua vez a transmite ao garoto de recados Guégue, nome que claramente se refere às dificuldades de dicção da personagem. Ele é apresentado pelo narrador da seguinte maneira: “O Guégue era o bobo da Fazenda. Retaco, grosso, mais para idoso, e papudo – um papo em três bolas meando emendas, um tanto de lado.” (ROSA, 2001: 60).

É pelo bobo Guegué que o recado chega até o louco beato Nominedômine (nome do homem) ou Jubileu, ou ainda Santos Óleos, outro misantropo com características de profeta que vem para revelar algo aos homens. Neste ponto, o conteúdo da mensagem adquire um caráter delirante junto do som dos sinos, para em seguida tomar uma forma menos confusa:

E com a palavra do Jubileu, a seguir, as indicações antes espalhadas começam a convergir. (...) Agora as indicações acorrem profusamente à superfície do discurso esperando o momento de serem colhidas (...) (MACHADO, 1976:101).

A colheita só poderia ser feita pelo Coletor que era “outro que não regulava bem” (ROSA, 2001: 80) e cuja “doideira (...) era uma só: imaginava de ser rico, milionário de riquíssimo, e o tempo todo passava revendo a contagem de suas posses.” (ROSA, 2001: 84).

A predominância nesse grupo de personagens é a demência caracterizando personagens isentas de senso, vistas como excêntricas, imbecis ou sonhadoras, dotadas de um misticismo exacerbado e fé cega nas palavras do morro, qualidade vital para a narrativa uma vez que permitiu que o recado chegasse até seu destino.

No entanto, é somente por meio do poeta Laudelim que o recado transformado em cantiga adquire significado. É ele quem dá unidade à estória, ou seja, a consagração vem pela palavra do poeta. Álias, podemos ver que “Laudelim” apresenta semelhança com o verbo latino laudare: louvar, além de ser espécie de onomatopéia do barulho de sinos tocando (Laudlin). Aqui o ciclo se fecha “pela fé, pela loucura, pela inocência, pela poesia, em uma sucessão de videntes privilegiados porque carentes, o recado atinge enfim sua forma estruturada e definitiva (...)” (MACHADO, 1976: 102)

Assim o recado alcança Pedro Orósio após tê-lo “perseguido” durante toda a trajetória. Pedro é, pois, a personagem central da narrativa, o motivo pelo qual o recado foi emitido e construído. É ele quem serve de guia da expedição, missão que aceita unicamente pelo fato de que passaria perto dos seus Gerais. Pedro é enxadeiro e boiadeiro, sendo que é da terra que retira seu sustento e sua força, é o contato com ela que lhe traz a sensação de liberdade, daí aparecer constantemente descalço ou incomodado por usar sapatos. Ele é dono de uma força descomunal que remete ao seu nome Pedro = pedra, representando dureza, simplicidade e constância. A sua semelhança com a pedra pressupõe também uma ligação com o próprio Morro da Garça. Os outros nomes atribuídos a ele no decorrer da narrativa indicam muito de seus atributos. Em “Orósio” temos oros: montanha e ósio: escolhido. Já em Chãbergo há a junção de chão: carne da perna do boi com bergo: do francês berger (vaqueiro) ou do alemão berg (pedra). Ainda deste nome pode-se encontrar uma aproximação com chamego que se refere ao fato de Pedro ser um grande conquistador adorado pelas mulheres. Outra alcunha é Pê-Boi, referência direta à sua ocupação.

O outro grupo que destacamos neste estudo são os antagonistas de Pedro Orósio, isto é, aqueles que planejam a morte deste, impulsionados pela inveja. O que interessa ressaltar aqui é a analogia que Guimarães Rosa faz dessas personagens com relação aos planetas do sistema solar e, portanto, com deuses da mitologia greco-romana. Como líder dos traidores, encontramos Ivo Crônico, presente desde o início da novela como integrante do grupo que acompanha Pedro Orósio. Primeiramente, é chamado “(...) um Ivo, Ivo de tal, Ivo da tia Merência.” (ROSA, 2001: 28). Neste ponto da narrativa, Ivo aparece descaracterizado, indeterminado (note-se o artigo indefinido diante de seu nome), não-atuante. Mais tarde, quando suas intenções começam por se tornar mais claras, passa a ser chamado Crônico, ou Cronos, o deus que atua sobre o tempo. Eis alguns atributos de Ivo:
Persistente, teimoso, determinado, constante, aí está Cronos, o Tempo, Saturno. O nome de Ivo Crônico, pois, designa sua função na narrativa – é ele quem age sobre o tempo, quem altera a cronologia prevista para os acontecimentos, quem antecipa a festa que estava marcada para o domingo no povoado vizinho e prepara a cilada para a véspera, o sábado, seu dia, sua plena dominação temporal (MACHADO, 1976: 109).
As outras personagens deste núcleo têm o nome e o comportamento determinados também pelos planetas, lembrando ainda que podem ser associados aos pontos de paragem, fazendas nas quais os viajantes descansam. O esquema abaixo elucida tais relações:
Jovelino – Jove – Júpiter: deus supremo;

Martinho – Marciano – Marte: deus da guerra;

João Lualino – Nhá Selena – Diana: deusa da caça representada pela lua;

Zé Azougue – Nhô Hermes – Mercúrio: deus do comércio e dos viajantes;

Veneriano – Dona Vininha – Vênus: deusa do amor carnal;

Hélio Dias Nemes – Apolinário – Apolo: deus do sol;

Ivo Crônico – Juca Saturnino – Saturno: deus do tempo.
Formada esta oposição, podemos confirmar a hipótese levantada por Ana Maria Machado em O Recado do Nome quando afirma que Pedro
(...) é também a Terra, planeta ao qual todos os outros astros do sistema se estão opondo (...). Mais ainda, ‘Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra edificarei minha igreja’. Pedro é também o mundo cristão que chega para dominar o mundo pagão da Antiguidade com seus deuses do Olimpo (p.113).
O sentido cristão pode ser atribuído à narrativa na medida em que observamos a religiosidade exacerbada característica dos profetas – pessoas encarregadas de servir como ponte entre Deus e Homem – encontrada nos loucos que repassam o recado. Assim, temos num plano simbólico um embate entre racionalismo, a astrologia e a própria cultura clássica, e o misticismo ilógico dos cristãos.

Além dessas, ainda temos as personagens a quem Pedro Orósio serve de guia, que são figuras alegóricas, assim como os traidores, uma vez que constituem uma abstração. Temos, por exemplo, seo Alquiste ou Olquiste, cujo nome está ligado à capacidade de repetir, naturalista encantado com a fauna e flora sertaneja que, devido à sua curiosidade científica, representa a percepção aguda e a objetividade. Já Frei Sinfrão, missionário católico, culto e estrangeiro como seo Alquiste, e seo Jujuca do Açude, fazendeiro de gado, são, respectivamente, a Igreja Católica e a Propriedade.

Pode-se perceber que o nome das personagens é um fator muito significante tanto nesta obra quanto em outras da autoria de Guimarães Rosa. Isso se torna claro quando notamos que o nome próprio surge como um signo intrinsecamente motivado, isto é, pelo que diz dos atributos físicos e psíquicos das personagens. No entanto, não devemos ver esse fato como uma tentativa de definir a personagem rigidamente.
Os nomes são escolhidos tendo em vista sua polissemia, não sua univocidade (...) os nomes próprios em Guimarães Rosa nada têm a ver com uma reificação ou uma simplificação, mas admitem leituras múltiplas, além de serem também múltiplos os nomes referentes ao mesmo personagem, vindo a polinomásia somar-se à polissemia onomástica (MACHADO, 1976: 49).
Os nomes mudam durante a novela, sendo que estas transformações são significativas na medida em que nos permite observar a evolução de uma determinada personagem no decorrer da narrativa.
5. tema
E assim seguiam de um ponto a um ponto por brancas estradas calcáreas, como por linha vã, uma linha geodésica. Mais ou menos como a gente vive. Lugares. Ali, o caminho esfola em espiral uma laranja: ou é a trilha escalando contornadamente o morro, como um laço jogado em animal. (ROSA, 2001: 37)
No início de “Recado do Morro”, temos um grupo de homens que caminham pelo sertão tendo como guia o enxadeiro Pedro Orósio. Ele só aceita o serviço porque deseja visitar sua terra natal, os Campos Gerais. O desejo se constitui, então, numa busca do protagonista por sua origem, sua paz. Nesta busca está caracterizado o tema da viagem: Pedro Orósio quer retornar e para isso torna-se necessário movimentar-se. O tema está também em Grande Sertão: Veredas , assim como em outras obras de Guimarães Rosa e tem como referência a teoria platônica. Para o filósofo grego, a realidade engloba dois planos: o mundo sensível, isto é, aquele que pode ser captado pelos sentidos, e o mundo das idéias, ou aquele das formas perfeitas e eternas. As coisas do mundo sensível não são uma imagem fiel das contidas no mundo das idéias sendo tão somente uma cópia inferior daquelas. Todo ser é concebido dentro do plano ideal, para o qual retornam após uma passagem pelo plano material. Uma vez no mundo sensível, o ser humano esquece-se do mundo primordial, no entanto, algumas lembranças vagas e esparsas permanecem, resultando, quando compreendidas, em uma saudade. Essas reminiscências assolam o protagonista, mas por mais que ele se esforce não pode reconstituí-las:
[...] Mesmo no momento, se queria [Pedro Orósio] pôr a rumo o pensamento, de lembrança de lá [dos Gerais], não conseguia, sem sensatez, sem paz. Faltava a saudade, de sopé. (ROSA, 2001: 73, grifo nosso)
Mais adiante, essa saudade que faltava a Pedro Orósio começa a vir à tona, justamente depois que ele passa perto de seus Gerais, uma metáfora do Mundo das Idéias. É neste ponto que as lembranças ficam mais claras, permitindo a saudade:
Ao sim, tinha viajado, tinha ido até princípio de sua terra natural, ele Pedro Orósio, catrumano dos Gerais. Agora, vez era que podia ter saudade de lá, saudade firme. Do chapadão – de onde tudo se enxerga. Do chapadão, com desprumo de duras ladeiras repentinas, onde a areia se cimenta: a grava do areal rosado, fazendo pururuca debaixo dos cascos dos cavalos e da sola crúa das alpercatas. (ROSA, 2001: 100)
Disso concluímos que a viagem é fundamental, Pedro deve necessariamente passar pelo mundo sensível, que se constitui numa etapa de aprendizagem. Atravessar a vida é, portanto, inevitável para que o ciclo se complete. A travessia constitui a viagem que, em última instância, é a atividade temporal da existência. No decorrer dessa trajetória o ser vai se transformando e também modificando o espaço ao seu redor como afirma Benedito Nunes em O dorso do tigre:
“Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, do outro, o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz. Ele atravessa a realidade, conhecendo-a [...]” (NUNES, 1969:179) .
Deste ponto de vista, a viagem pode também ser interpretada como a ação de decifrar uma outra realidade que está implícita naquela captada pelos sentidos. É o que ocorre quando Pedro Orósio identifica a si mesmo na canção tocada por Laudelim e sabe-se alvo da traição que irá sofrer por parte de seus pretensos amigos. Faz-se necessário observar que aquelas palavras acompanharam-no no decorrer de toda a narrativa constituindo uma viagem metafórica, pois o retrato da poesia que lentamente se revela mostra o conhecimento da realidade:
[...] mediante a ação da poeisis originária, dessa atividade criadora, que nunca é tão profunda e soberana como no ato de nomeação das coisas, a partir do qual se opera a fundação do ser pela palavra, [...]. (NUNES, 1969: 179)
No entanto, a compreensão só foi alcançada após a viagem espaço-temporal e ele pode se defender de seus inimigos, salvando-se. Este momento epifânico provoca uma transição do desconhecido para o conhecido, uma mudança que permite que Pedro possua um novo olhar com relação ao que está posto, estando finalmente preparado para voltar para seus Gerais. Não se pode pensar, porém, na morte do protagonista uma vez que a teoria platônica não mencionava a morte, mas sim no retorno a um plano mais privilegiado, prêmio merecido pelo fato de ele ter superado uma etapa. Pedro Orósio completa o ciclo e renasce fortalecido, gigantesco.
6. narrador e focalização
A narrativa em “O recado do morro” se estabelece a partir do ponto de vista de um narrador heterodiegético que atua sob uma focalização onisciente, segundo a classificação proposta por Genette – embora este use o termo “focalização zero” para designar a focalização onisciente.

Na novela em questão, a transcendência do narrador em relação à diegese evidencia o tom demiúrgico adotado por ele, quando, além de narrar descrições físicas aparentes, relata também traços que pertencem ao nível psicológico, como se pode notar num excerto da caracterização de seu Olquiste feita pelo narrador:
Calçava botas côr de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu de palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacôco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atôa, uma môita de carrapicho, um ninhol de vêspos. (ROSA, 2001: 28)
A onisciência do narrador também é explicitada num trecho em que ele relata o pensamento de Pedro Orósio:
E, nesse comenos, Pedro Orósio entrava repentino num imaginamento: uma vontade de, voltando em seus Gerais, pisado o de lá, ficar permanecente, para os anos dos dias. Arranjava uns alqueires de mato, roçava, plantava o bonito arroz, um feijãozinho. Se casava com uma moça boa, geralista pelo também, nunca mais vinha embora... (ROSA, 2001: 47)
Outra característica a ser observada considerando a presença de um narrador heterodiegético e onisciente é a carga de subjetividade expressa no texto a partir do mecanismo da intrusão do narrador. No exemplo que se segue, depois de descrever a aparência de Catraz, o narrador tece um comentário a respeito da personagem:
Desde isso, porém, veio chegando, saco bem mal-cheio às costas e roupinha brim amarelo de paletó e calça, um camarada muito comprido, magrelo, com cara de sandeu – custoso mesmo se acertar alguma idéia de donde, que calcanhar-do-judas, um sujeito sambanga assim pudesse ter sido produzido. (ROSA, 2001: 56)
Desta forma, fica evidente que o narrador de “O recado do morro” se posta num ângulo privilegiado para a observação da história e controla o fluxo de informações ao leitor, aproveitando-se do fato de ser o focalizador e de sua posição exterior à diegese.

Os eventos narrados estão dispostos em três tipos de discurso que se intercalam no decorrer da novela:
a) Discurso direto, que destaca a presença do dialogismo e procura proporcionar credibilidade àquilo que foi dito por conta da inserção da voz da própria personagem no texto, como se pode perceber numa conversa entre seu Malaquias e seu Jujuca:
– “E que foi que o Morro disse, seo Malaquias, que mal pergunto?” – seo Jujuca quis saber.

– Pois, hum... Ao que foi que êle vos disse, meu senhor? Ossenhor vossemecê, com perdão, ossenhor não está escutando? Vigia êle-lá: a modo e coisa que tem paucta... (ROSA, 2001: 40)
b) Discurso indireto, que transcreve a fala do narrador intercedendo pelas personagens, como num trecho em que Pedro Orósio e sua comitiva se encontravam perdidos sob a guia ineficiente de Guégue: “Perguntou ao Guégue. O Guégue demorou explicação” (ROSA, 2001: 65)
c) Discurso indireto-livre, em que as vozes do narrador e da personagem se misturam como acontece no segundo parágrafo do exemplo a seguir:
Sujo desse ciúme, causa das moças, azangando. Ainda bem, que agora estavam reavindados, em alegres falas. (...) Amém, medo, ah, isso, e de ninguém, êle Pê nunca sentira! Bastava se ver, pra saber. Receio de mazela, isto sim, de algum dia se enfermar de grave doença, não dar conta de cumprir seu trabalho para sustento, não ser mais querido das môças nem respeitado do povo (ROSA, 2001: 88).
7. tempo
Em “O recado do morro”, “a realidade social na qual se insere o relato é a do sertão de hoje” (ELIADE, 2001: 53), porém a presença dos mitos faz seu tempo singularizar-se em um tempo mítico, que “sempre conta o que se produziu num tempo (...) que ele mesmo instaura” (NUNES, 1988: 66).

Para Suzi Frankl Spenber (SPENBER, 1982: 52) o recado do morro ganha sentido depois de repetido, fragmentado, reduzido a mito e, por final, transformado em história por Laudelim. Mircea Eliade (ELIADE, 2001: 84) diz que o mito conta “um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio”, que se constitui de um mistério que o homem só pode conhecer se lhe for revelado. Eliade (idem) também fala que no mito cosmogônico de certos povos, acredita-se que o receptor do mito regressa ao tempo de origem, pois “a Vida não pode ser reparada, mas somente recriada pela repetição simbólica da cosmogonia” (grifo do autor). Pedro Orósio é o receptor do recado e é por ele que se regenera; se antes Pedro pendia para a terra, com o recado liberta-se “para o espírito, para a contemplação do Modelo” (ARAUJO, 19[?]: 73) e é levado ao seu destino de transformação. A assimilação do recado acontece durante a festa, que é quando o tempo primordial é recriado, quando o homem sai do tempo profano e reatualiza os atos criadores divinos (ELIADE, 2001: 76).

Em uma análise feita com base nas propostas de Genette (GENETTE, 19[?]: 36-99) em que se contrapõe o tempo da diegese com o tempo da narrativa, pode-se encontrar anacronias e, sobretudo, mudança de velocidade. Por quase toda a narrativa, é usado o recurso de pausas descritivas em que se narra as paisagens, inclusive pelas anotações do local por seo Alquiste. A diegese é de uma viagem de ida e volta com duração de quase um mês [“(...) na segunda-feira era que ia lá, por fim de ter andado fora pouco faltava para um mês” (ROSA, 2001: 51)], entre julho e agosto [“(...) teve princípio e fim, num julho-agôsto (...)” (ROSA, 2001: 27)]. Porém, a narrativa inicia-se no meio da viagem, a caminho da fazenda de Jove, em que são ocupadas em torno de vinte páginas, das setenta e sete existentes. Dentre essas primeiras páginas, há uma analepse que indica o ponto de partida dos viajantes, a passagem pela fazenda de seo Saturnino [“Ainda na véspera, na Fazenda Saco-dos-Côchos, de seo Juca Saturnino, onde tinham falhado (...)” (ROSA, 2001: 36)]; em seguida há um sumário de um parágrafo em que se relata a escalada pelo morro, onde “(...) o caminho esfola em espiral de laranja (...)” (ROSA, 2001: 37).

Depois de Jove, continuam a viagem de ida até Apolinário, que é noticiada por uma elipse [“Adiante, houve dias e dias, dado o resumo. A onde queriam chegar, até lá chegaram, a comitiva, em fins” (ROSA, 2001: 52)]. O caminho percorrido, explicado por uma analepse, ocorre em forma de sumário de um parágrafo [“As quais, sol a sol, val a val, mapeadas por modos e caminhos tortos, nas principais tinham sido, rol: a do Jove (...)” (ROSA, 2001: 52-3)].

Há uma aceleração quando é narrada a volta pelas quatro primeiras fazendas (Apolinário, Marciano, Nhá Selena e Nhô Hermes), que ocupa duas páginas; já em dona Vininha, em que o recado é repassado por Catraz e Joãozezim, a narrativa ocupa quase cinco páginas. Assim, o tempo da narrativa é mais lento nas passagens em que se dão os recados, sobretudo nas últimas vinte e cinco páginas do conto, quando há a aparição de Nominedômine no arraial e a festa, em que Laudelim recria o recado por meio de uma canção, que Pedro Orósio enfim compreenderá.

O tempo guarda uma relação intrínseca com o espaço, característica do tempo mítico, isto é, um tempo que remonta as origens:
Aí temos os dias da semana, correspondendo perfeitamente a cada uma das fazendas, a seus deuses patronos na mitologia clássica, aos astros do sistema planetário da Antiguidade. (MACHADO, 1976: 102)
As correspondências derivadas do calendário romano, cujos resquícios ainda podem ser encontrados nos nomes dados aos dias da semana em línguas neo-latinas, são as seguintes:
Apolinário (Apolo) – domingo;

Nhá Selena (Diana) - segunda-feira;

Marciano (Marte) – terça-feira;

Nhô Hermes (Mercúrio) – quarta-feira;

Jove (Júpiter) – quinta-feira

Dona Vininha (Vênus) – sexta-feira

Juca Saturnino (Saturno) – sábado
8. espaço
O espaço físico em “O recado do morro” é, assim como em grande parte da obra de Guimarães Rosa, o sertão de Minas Gerais, constituído por seus elementos naturais, como as veredas e as paisagens de seca, e os humanos e modificados pelo homem, como os jagunços habitantes locais e as fazendas. Contudo, seria superficial fazer apenas essa análise do espaço na novela e ignorar seu caráter mítico, o qual se manifesta em todos os elementos da estória.

Em seu estudo, Heloísa Vilhena de Araújo traz uma visão mais profunda do papel que os cenários, e também as personagens, exercem na obra:
“O recado do morro” fala da Terra – do Morro das Garças que, imóvel, acompanha a viagem de ida e volta de um grupo de viajantes (“planetas”), guiados por um enxadeiro, Pedro Orósio (Pedra, Montanha); grupo que passa, em seu movimento de translação, por sete fazendas – de D. Vininha (Vênus), seo Jove (Júpiter), seo Saturnino (Saturno), seo Apolinário (Sol), Nhá Selene (Lua), Nhô Hermes (Mercúrio) e seu Marciano (Marte). (ARAÚJO, 1992: 19)
A autora ressalta neste trecho a relação do Morro da Garça (Graça) com o planeta Terra. Esta analogia é sugerida, ainda que aí permaneça obscura, pelo autor já na epígrafe atribuída a Plotino, que diz:
O melhor, sem dúvida, é escutar Platão: é preciso – diz ele- que haja no universo um sólido que seja resistente; é por isso que a Terra está situada no centro, como uma ponte sobre o abismo; ela oferece um solo firme a quem sobre ela caminha, e os animais que estão em sua superfície dela tiram necessariamente uma solidez semelhante à sua.
Mais adiante, a propósito da descrição do Morro da Garça, percebemos a comparação:
E, indo eles pelo caminho, duradamente se avistava o Morro da Garça, sobressainte. O qual comentaram. Pedro Orósio bem sabia dele, de ouvir o que diziam os boiadeiros. Esses, que tocavam com boiadas do Sertão, vinham do rumo da Pirapora, contavam – que, por dias e dias, caceteava enxergar aquele Morro: que sempre dava ar de estar num mesmo lugar, [...]. (ROSA, 2001: 51, grifo nosso)
As partes destacadas ressaltam a solidez e a imobilidade do Morro, guardando uma relação direta com o texto de Plotino.

É possível perceber que há uma grande simbologia nas fazendas pelas quais os viajantes passam durante sua jornada. Cada uma delas representa um local de “(...) repouso para o movimento efetuado, constitui um ponto a que corresponde uma fala e uma escrita marcadas pela intertextualidade das reminiscências e das alusões” (CAMPOS, 2000: 203, grifo do autor). O que se conclui, então, é que “(...) as fazendas não se reduzem à manifestação do empírico mais imediato, mas ganham, num nível mediato, graças à força explicativa da metalinguagem, o conceito de planetas” (CAMPOS, 2000, p. 203, grifo do autor). O próprio nome de cada uma das fazendas remetem à idéia de corpos celestes, evidenciando assim o papel da linguagem na composição de detalhes aparentemente, até certo ponto, implícitos na obra. A Terra é, portanto, um corpo imóvel em torno do qual estão dispostos os outros planetas.

O que se tem, então, é um espaço físico de paisagens naturais, cercado por tipos pobres, que representa, nas mãos de Rosa, um espaço simbólico de grande riqueza, em que tudo assume um papel de maior importância do que à primeira vista possa parecer exercer.



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