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A Estética do Oprimido

Ensaio de Augusto Boal


A Fundamentação Teórica

1. Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares

2. Palavras São Meios de Transporte

3. Os Malefícios da palavra

4. O Processo Estético e o Produto Artístico

5. O Amor e a Arte

6. Arte e Conhecimento

7. Estética e Neurônios

8. Invasão dos Cérebros

9. A Metáfora Como Translação

10.Coroas de Circuitos Neuronais

11.Neurônios Estéticos

12.O Volume, o Território e as Insígnias do Poder

13.Três Níveis de Percepção

14.A Necessidade da Estética do Oprimido na luta pela Humanização da

Humanidade

15.O Método Subjuntivo

16.Humanos e Hominídeos

A Realização Prática: o Projeto Prometeu

1. A Palavra

2. A Imagem

3. O Som

4. A Ética

1

Conjuntos Analógicos,

e

Conjuntos Complementares

A Natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia,

nem os fios da minha barba ou gêmeos univitelinos, nem impressões digitais ou

duas gotas de chuva, nem as árvores da floresta, nem seus galhos e folhas, nem

as estrias de cada folha... nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisas

inanimadas e todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis, mesmo se

clonados.

Para seres semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vida

psíquica, seria impossível viver dentro dessa infinita diversidade se não

pudessem organizar a sua percepção do mundo e simplificá-la.

Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que

olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência

de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos - tal o acúmulo catastrófico e

torrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa, mas nós não

podemos viver essa vertigem.

Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências simples das

realidades complexas, através da construção de Conjuntos Analógicos e

Conjuntos Complementares. Embora simplificações excluam complexidades,

outro jeito não há, e somos forçados a realizar o processo psíquico da formação

de Conjuntos para nos podermos guiar e viver neste mundo.

Quando, pela primeira vez, o bebê abre os olhos, olha tudo que os seus

olhos alcançam e, olhando tudo, nada vê: apenas a cor cinza. Aos poucos, na

medida em que o seu nervo ótico começa a ser estimulado pela luz e pela

sombra, organiza sua percepção visual distinguindo linhas retas e curvas,

profundidades e cores. Quando deixa de olhar tudo ao mesmo tempo, é quando

realmente começa a ver – e vê Conjuntos.

Nenhum peixe é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes se

assemelham: eis o cardume. Nenhuma rosa é igual à outra rosa, mas todas se

parecem, vermelhas, brancas ou amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é

2

homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas pode-se abstrair as

diferenças que, ao microscópio, existem, claras e profundas. 1

Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra,

vermelho o sangue em nossas veias e plúmbeo o céu de chuva... Sabemos que

não é assim: nenhum milímetro é igual a outro.

Por analogia, podemos perceber e formar Conjuntos Analógicos,

homogêneos, que englobam seres semelhantes, mas não iguais – isto é,

Unicidades - em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera,

um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.

Podemos perceber, também, Conjuntos heterogêneos, feitos de elementos

Complementares. Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos

corre água: no caudaloso Amazonas ou no riacho do Ipiranga. Suas margens são

diferentes, mas todas oprimem a água que neles corre. As pedras, no leito do rio,

são desiguais no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas de

matérias diferentes, orgânicas ou minerais.

Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de

coisas inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem ser percebidos

como Conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos

elementos únicos que o compõem. Podemos nomear como rio todos os

Conjuntos que podem ser percebidos como semelhantes a este. Todos os rios têm

a identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falando

quando falamos do Nilo egípcio ou do Arroyo de la Sierra2 de José Marti.

Podemos perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes,

mesmo sabendo que não são iguais; o rebanho, como Conjunto de animais da

mesma espécie, mesmo tendo cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome;

podemos ver a multidão como um Conjunto de seres humanos - embora nenhum

deles seja igual a nenhum de nós.

Até mesmo cada indivíduo, ou cada coisa, é um Conjunto heterogêneo

feito de elementos Complementares: temos cabeça, tronco e membros, artérias e

1 A floresta não está contida em nenhuma das árvores que a compõem, mas não existiria sem

elas. A cidade não é nenhuma de suas ruas e praças, mas, sem elas, não haveria cidades.

2 “El arroyo de la sierra me complace más que el mar” - (“O riacho da montanha me agrada

mais que o mar”) - versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário

cubano, herói da guerra de libertação nacional contra os espanhóis

3

veias, pelo e pele; uma pedra tem muitas cores, mesmo quando é cinza, e ricas

variações formais em sua superfície, mesmo quando roliças.

Assim, simplificando a nossa percepção da Natureza, podemos viver sem

sobressaltos: Unicidades podem ser sistematizadas em Conjuntos Analógicos de

seres e coisas semelhantes, ou em Conjuntos Complementares de coisas e seres

dessemelhantes. Nessa simplificação, perde-se a riqueza das diferenças e das

identidades únicas que, por infinita, é inacessível.

Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da multifária Natureza,

funciona como couraça que nos permite o acesso apenas às aparências do real3 e,

sobre elas, podermos predicar.

Para que nos possamos comunicar entre humanos, esses Conjuntos devem

ser nomeados: nomeamos montanha todas as protuberâncias da terra que beijam

o céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual à outra montanha,

nenhuma nuvem igual à outra nuvem, nenhum sonho igual ao meu. Nomeamos

mar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar de flores ao vento, mar de ondas

raivosas - todas aglomerações onduladas de água, girassóis ou gente.

Nomear significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação, no tempo e

no espaço, do que é fluido, do que não pode parar nem ser parado, nem no

espaço, nem no tempo.

Tudo é trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou

quem era antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a

próxima?

Sou um rio de Crátilo4: em mim, correm águas que não corriam, e outras

correram e jamais voltarão rio acima: escondem-se no mar.

3 Os Conjuntos se referem apenas à percepção sensorial do mundo e se organizam em

Estruturas ficcionais, imaginárias, que se constituem através da intervenção da palavra e dos

símbolos – da palavra gramatical, como Léxico e, sobretudo, como Sintaxe. Estruturas são

Conjuntos de Conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: Estrutura

Moral, Política, Social, Familiar, Ritual, Comportamental, etc.

As Estruturas se sustentam pelas relações de Poder, que representam, no campo humano e

animal, o mesmo papel das forças do Universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadas

interações forte e fraca, que ocorrem nos núcleos atômicos.) Todas as relações humanas são

estruturadas pelas relações de Poder em suas variadas formas - políticas, sociais, psicológicas,

culturais, carismáticas, sexuais, etc. - que determinam valores. Estes valores, que são

abstrações, determinam comportamentos concretos.

4

Ninguém pode me ver duas vezes como sou, em cada instante fugaz da

minha vida, como fugazes são todos os instantes... e a vida. Jamais serei o

mesmo a cada segundo que me foge. Aqueles que me vêem agora, jamais serão

iguais a si mesmos em dois segundos sucessivos da trajetória dos seus caminhos.

Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou.

Hesito: para onde? Escolho meus caminhos, se puder; sigo em frente, se

obrigado!

Palavras São Meios de Transporte

Palavras designam Conjuntos, mas ignoram Unicidades. Negros e

brancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato... são Conjuntos

imaginados, mas que não existem como concreção. São, mas não existem. O que

existe, corporeamente, é este negro e aquela branca, esta mulher e aquele

homem, esta camponesa e aquele operário e, mesmo assim, em trânsito, em

devir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar de ser. A cada instante, nenhum

destes é o mesmo no seu permanente devir.

Os Conjuntos, dada a força que os unifica, podem reagir como se

unicidades fossem: um comando militar ou um time de futebol, uma família

unida ou um sindicato em greve. Um Conjunto é sempre mais do que a soma de

suas unidades – é sinergia.

As palavras - os Nomes, sobretudo - são indispensáveis para que seja

possível a troca, o diálogo, porém são significantes polissêmicos que, ao serem

percebidos pelo receptor, perdem grande parte dos significados que motivaram

o emissor.

Quando pronunciadas pelo emissor, as palavras são significantes com

significados ricos das experiências desse emissor, das suas memórias, desejos e

imaginações; no trânsito, esses significantes mudam seus significados, como

4 Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia que

ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes porque, na segunda, já serão outras águas que

por ele estarão passando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo que

ninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão sempre

em movimento: em que água estará entrando?

Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa?

5

caminhão que, de uma cidade a outra, trocasse sua carga: ao chegar ao receptor,

as palavras estarão carregadas das experiências deste e não daquele5. Mesmo que

chegue ao seu destino a carga intocada, o receptor tem os seus próprios aparelhos

de recepção-tradução, que traduzem e traem a mensagem recebida. Traduttore,

tradittore – dizem os italianos: tradutor, traidor.

As palavras são um meio de transporte, como ônibus e caminhões. Da

mesma maneira como os ônibus transportam pessoas e os caminhões carga, as

palavras transportam nossas idéias, desejos e emoções. Com a mesma palavra

pode-se dizer – na frase escrita, com a sintaxe e, na falada, com a linguagem da

voz: timbre, tom, volume, pausas, etc. – exatamente o contrário daquilo que

afirma e jura o dicionário.6

A primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo:

podemos apreciar a beleza de um avião a jato, de um trem maria-fumaça, ou de

uma palavra inusitada: mas, para melhor compreende-los, é preciso examinar o

que levam dentro.

A palavra é um todo que não é nada. É um traço que riscamos na areia; um

som que, como delirantes escultores, esculpimos no ar. Um traço que as ondas

levam; um som que se dissolve na brisa.

Areia, nós a sentimos na mão; o vento, no nosso rosto. E as palavras...

onde estão? Em nenhum lugar, pois não existem: apenas são.

As palavras não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. Palavras são

o vazio que preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro.

Nós, rasgando a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas

vidas, desejos, medos e coragem, sensações e emoções: eis a palavra.

5 Os significados dos significantes (que são as palavras), são diferentes do significado da

palavra e do ato de significar. Quando significo algo a alguém, além dos significantes

(palavras) que pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu olhar, meu corpo: este conjunto de

significantes integra o meu significar que não está presente em nenhum dos elementos que o

compõem – apenas no Conjunto de todos eles. Os Conjuntos possuem qualidades de que suas

partes carecem.

6 “Nunca eu tivera querido/ dizer palavra tão louca. / Bateu-me o vento na boca / e depois no teu

ouvido./ Levou somente a palavra / deixou ficar o sentido. /O sentido está guardado/ no rosto

com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu sorriso suspenso, /

como um beijo malogrado.” – Canção, Cecília Meireles

6

Preenchemos o nada com o tudo que somos: somos as palavras que dizemos, e as

palavras somos nós, transformados em sons e traços.

Para que as palavras adquiram um sentido mais preciso e menos

permissivo, é necessário vesti-las: na tragédia grega, com máscara, coturno e

manto; nos templos, com sua liturgia; no exército, com hierárquica disciplina; no

cinema, com iluminação, ângulos e figurinos. Na vida cotidiana, com nossas

roupas, gestos culturais, timbres, ritmos da fala, fisionomias...

Para que sejamos capazes de apreender o Uno e não apenas os Conjuntos

aos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as

imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse

gado é feito de unicidades bovinas irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada

boi tem a sua personalidade própria: é Uno – Mimosa, Estrela... A boiada é uma

sinergia.

Palavras são obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las e

buscar formas de comunicação que não sejam apenas racionais, mas também

sensoriais - comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética da

Razão é a razão do teatro e de todas as artes.

Não podemos divorciar razão e sentimento, idéia e forma. São sólidos

casais, mesmo quando às turras, bicadas e cabeçadas.7

Os Malefícios da Palavra

As palavras são tão poderosas que, quando as ouvimos ou pronunciamos,

obliteramos nossos sentidos através dos quais, sem elas, perceberíamos mais

claramente os sinais do mundo. Sua compreensão é lenta porque necessitam ser

decodificadas, ao contrário das sensações, que são de percepção imediata – eis a

principal diferença entre as linguagens simbólicas e sinaléticas, símbolos e

sinais.

Se eu escuto uma palavra, seja qual for, necessito de um certo tempo para

compreender o seu sentido e as intenções do meu interlocutor. Mas, se ponho o

7 A polissemia da palavra permite que, nestes tempos modernos, a palavra liberdade, por exemplo, seja

usada para designar qualquer restrição que se faça à existência dos outros. Liberalismo significa

ausência de quaisquer limites que restrinjam o poder econômico e protejam os destituídos.

Democracia significa que todos os candidatos a uma eleição têm o mesmo direito de comprar tempo

na TV e espaço nos jornais... se tiverem dinheiro para tanto.

7

dedo em um fio desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa de

nenhuma tradução especial. Grito!

Os animais, que não falam nem trocam idéias entre si, mesmo quando

necessário – como as vacas a caminho do matadouro, como dizia Bertolt Brecht

-, dependem exclusivamente dos seus sentidos para sua percepção do mundo.

Quando os seres humanos, em épocas pré-históricas, começaram a

balbuciar as primeiras palavras da Proto-Proto-Língua universal, começou a

lenta degradação dos seus sentidos.

A suposta existência dessa língua universal primitiva, já mencionada na

Bíblia, foi cientificamente defendida pelos lingüistas norte-americanos Joseph

Greenberg e Merritt Ruhlen, a partir de 1980.

Para eles, todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem ser

sistematizadas e reunidas em diferentes famílias (como, por exemplo, a família

que reúne as línguas românicas, eslavas, germânicas...) Estas famílias são,

hipoteticamente, originárias de uma única Proto-Língua, no caso, a assim

chamada Indo-Européia que, talvez, tenha sido falada por uma população

nômade a três ou seis mil anos antes de nós. Juntando-se esta e outras Proto-

Línguas, forma-se uma imensa árvore genealógica com um tronco comum: a

Proto-Proto-Língua, primeira língua universal. Tem sua lógica, mesmo para

quem não acredita em Adão e Eva

Um trágico exemplo dos humanos sentidos esmaecidos pelo surgimento da

fala aconteceu no dia 26 de Dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis

devastaram várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil

pessoas. No entanto, no Parque Nacional de Sri Lanka, povoado por animais

silvestres, nenhum deles morreu apesar da tremenda inundação provocada pelas

poderosas ondas de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais,

pássaros e roedores, e até os desajeitados crocodilos conseguiram escapar. Todos

fugiram a tempo para regiões mais elevadas quando perceberam as primeiras

vibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se

abria.

Só morreram os animais domésticos... já contaminados pelas palavras que

ouviam, mesmo sem entendê-las.

8

Essa tragédia não tira o valor supremo da Palavra como refinado meio de

comunicação, mas revela um deslocamento da fina percepção - dos sinais para os

símbolos - que traz consigo algumas tristes desvantagens.

Asiáticos e africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisos

simbólicos - palavras! -, através de telefones e megafones, TVs, rádios ou

telegramas, sem atentarem para os sinais sísmicos que os seus corpos

registravam, mas que não chegavam às suas consciências – sensações que não se

transformavam em mensagens.

Processo Estético

e Produto Artístico

O Artista é aquele que, como qualquer de nós, é capaz de ver Conjuntos

onde analogias ou complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver

em sociedade. Porém, ao não se deter diante da visão conjuntiva que usamos

para perceber a realidade, através dos Conjuntos Analógicos ou

Complementares, ou diante das palavras que usamos para nos comunicar – pois

que as palavras são símbolos que designam Conjuntos -, o Artista avança,

penetra no real e revela, em seu fazer estético (a busca, o trabalho, a tentativa, o

erro e o acerto) e no seu produto artístico (a obra de arte acabada), percepções e

aspectos únicos dessa realidade encouraçada, blindada: percebe e revela

unicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia, e pelos

sentidos que as agrupam, sem percebê-las.

9

O Artista penetra na unicidade do ser8, como se buscasse o seu

complemento, ou como se buscasse a si mesmo: sua Identidade na Alteridade. O

Uno busca o Uno, busca a si mesmo no Outro9.

Essa dinâmica percepção nunca se imobiliza, mas se intensifica ou

diminui de intensidade, sempre fluida: tanto a percepção do artista ao perceber

ou a fabricar a Coisa, como a do espectador ao fruí-la, ou a do amante ao amar.

Amores se conquistam e se perdem, ao sabor da vida... e do domínio que, sobre

ela, possamos alcançar. Como a Arte, que não é nunca a mesma.

Embora apenas algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de

Artistas, todo ser humano é, substantivamente, artista. Todos possuímos, em

maior ou menor grau, a capacidade de penetrar em unicidades, fazendo arte ou

amor. Somos capazes de encontrar o Uno.

É importante notar a distinção que aqui faço entre o fazer, isto é, o Processo

Estético, e o já feito, ou seja, o Produto Artístico. Para que este exista, aquele é

necessário; mas não é necessário que o Processo Estético dê origem ao Produto

Artístico, que pode ficar inconcluso.

Para a Estética do Oprimido, mais importante é o Processo Estético que

desenvolve as percepções de quem o pratica, embora seja bem desejável que se

chegue ao Produto Artístico – a obra de arte acabada – pelo seu poder social,

amplificador. O desejo de chegar à obra de Arte é estimulante – funciona como

8 Ao encontrar o Ser em sua unicidade - o artista, o espectador, ou o amante - defrontam-se

com o Infinito. O objeto do amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é um Conjunto, como

veremos mais adiante: aí reside o Infinito, que é o encontro impossível em que cada Unicidade

é um novo Universo (Nota 9, pg 8). O amante busca o Uno, exceção feita ao patológico Don

Juan que não ama ninguém: ama o amor, ama amar. Narciso, outro caso clínico, ama a si

mesmo

Algumas formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas de Loucura fazem

quase o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem, desesperados, na percepção de cada

um dos seres e coisas que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos Conjuntos.

Doentes há que vêem os poros assustadores que nos tornam penetráveis, e são incapazes de ver

a pele que nos protege o corpo. Ou formam Conjuntos de autonomia própria, que não são

referenciáveis nem ao real, nem à nossa percepção coletiva.

9 Nessa busca, encontra o Uno ou a maneira Una de criar novos Conjuntos que só o artista pôde

perceber – à moda do louco - mas que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nos

encontramos a nós mesmos, como Fernando Pessoa: “Ninguém a outro ama, se não que ama o

que de si há nele, ou é suposto!”

10

a busca do sonho, da utopia. Quando se chega a essa etapa, o seu autor recebe os

benefícios do reconhecimento dos outros, o que o leva a tentar mais vezes.

O Processo Estético permite que o sujeito se exerça em atividades que lhe

são habitualmente negadas, expandindo suas possibilidades expressivas e

perceptivas.

Cada estímulo cerebral em uma área de atividade humana estimula áreas

adjacentes: o cérebro é um eco-sistema e não um disco duro de computador. É

elástico e plástico. O Processo Estético, por essa razão, é útil em si mesmo, e

mais útil se torna quando chega à produção de um Produto Artístico que possa

ser compartido com outros sujeitos, igualmente empenhados em seus próprios

Processos Estéticos.

O Produto Artístico - a obra de arte - deve ser capaz de despertar, mesmo

naqueles que não participaram do Processo Estético que lhe deu origem, as

mesmas idéias, emoções e pensamentos que levaram o artista à sua criação.

É preciso deixar claro que o Processo Estético não é a Obra de Arte. Sua

importância e valor consistem em estimular e desenvolver as capacidades

perceptivas e criativas que estão atrofiadas no sujeito. Consiste em desenvolver a

capacidade, por menor que seja, que tem todo sujeito de metaforizar a realidade.

Todos somos artistas, mas poucos exercemos nossas capacidades estéticas.

O Amor e a Arte

Arte é amor. A pessoa amada é o Ser Único, descoberto pelo amante e só

por ele. Amando, nós o vemos e sentimos como insubstituível, irreproduzível.

Amando, nós penetramos na unicidade do ser amado que, por sua vez, é um unouniverso

complexo e em movimento constante. Justamente porque é constante

esse movimento, o amor não o é. Por isso, Swan, o personagem de Proust, pode

dizer, ao reencontrar seu antigo amor, já esquecido: - “Ela nem sequer é o meu

tipo...” Não é, agora, mas, no tempo em que se perseguiram, e no percurso que

percorreram juntos, foi!

O amor, que é uma experiência estética, embora fundado na realidade, é

obra do imaginário: ao amar, amamos não apenas a pessoa que concretamente

existe, mas as projeções que sobre ela fazemos – projeções que são produto e

parte de nós mesmos. Nosso imaginário projeta, sobre a pessoa amada, vícios e

11

virtudes que não lhe pertencem, mas que existem no nosso desejo ou no nosso

medo.

Amar é Arte, e Arte é Amor. Estes dois processos – amar, e perceber

esteticamente a unicidade de outro Ser, vivo ou Coisa - são absolutamente

idênticos. Mais ainda: são a mesma coisa10.

Sendo idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção do Outro, ou da

Coisa, não se congela nem se imobiliza: o Amor é fluxo de corrente alternada -

como pode ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmos

constantes ou previsíveis - nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante

variação.

É verdade que existem amores eternos – especialmente os que bem cedo

terminam em espantosas tragédias sangrentas... - e obras de arte perenes, mas

nem a pessoa amada, nem a obra admirada, são admiradas e amadas com a

mesma intensidade constante, nem pelas mesmas razões a cada momento.

No amor e na arte, a única constante é a inconstância.

Ao contrário do que se diz, o Amor não é um encontro: é uma perseguição!

Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele que

nunca é igual a si mesmo.

O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e

temos provado. Da mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor, o

cultivo do Amor é uma arte.

Arte e Conhecimento

Para encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas, existem os

artistas, cujas atividades estéticas – isto é, sensoriais – surpreendem as

unicidades e permitem conhecer a verdadeira realidade, sempre única. Na Arte,

como Processo Estético, e na Obra de Arte, como coisa acabada, como Produto

Artístico, o ser humano entra em contato com o real - como no orgasmo

apaixonado ou no delírio.

10 Da mesma forma que o amor não é “...imortal, posto que é chama...” (Vinicius de Moraes)

também a fruição da obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos encontramos.

Podemos descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la.

12

Neste sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, subjetiva,

sensorial, não científica. Não é melhor que outras, mas é única. O artista, no

exercício da sua Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidades

escondidas pelos Conjuntos11; na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmago

do real e cria um novo Conjunto - a Obra - que revela o Uno descoberto nesse

mergulho; este, por analogia, nos remete a nós mesmos.

Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de

Beethoven, a trêmula ária Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou a triste

Donna traviata verdiana, em cada caso são acordes únicos que escuto, na

anárquica infinitude dos sons e ruídos que explodem à minha volta. Alguma

coisa única, escondida em algum único lugar de mim, desperta e vibra, e me faz

vibrar, como um todo, como ser humano – isto é a Arte.

Vibramos como artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de maneira

única. Através desta unicidade chega-se, por analogia, a um novo Conjunto

imaginário, ao qual chamamos platéia, formado por aquelas pessoas que alguma

identidade - não racional, mas racionalizável - sentem com tais acordes, com

Hamlet e Rei Lear, com o sorriso da Gioconda, os Santos do Aleijadinho ou com

a Vênus de Milo que, necessariamente, não pode ter os braços que já teve. Se os

ainda tivesse, seria outra – a ausência de braços revela a presença do tempo, que

também fruimos.

O eu se transforma em nós – extraordinário salto. Em nós e em cada eu,

descobrimos a descoberta que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós,

descobrimos o nosso mais abrangente Eu. Torno-me soma de todas as minhas

relações e algo mais, como em qualquer sinergia.

Metaforicamente, sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner e

Velasquez... Mesmo se jamais cantei como Valquíria e jamais pintei bêbedos ou

meninas.

A Arte re-descobre e re-inventa a realidade a partir de uma perspectiva

singular: a do artista, que é único, como é única a sua relação com o real, e o seu

caminho de ver e sentir, do qual nasce a Obra de Arte, capaz de recriar, em cada

11 A árvore não deve esconder a floresta, como disse o poeta, mas a floresta também não tem o

direito de esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo de flores,

nem cada pétala de cada flor.

13

um de nós, o mesmo caminho do artista. A realidade, tal como é vista pelo

artista, só pode ser observada a partir da sua Obra, também única. 12

O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a

todos, e não depende da individualidade do solitário cientista. O Teorema de

Pitágoras revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é

sempre igual à soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquer

país, a qualquer hora do dia ou da noite, no verão como no inverno, seja lá quem

for o desenhista do triângulo ou a cor dos seus cabelos. Newton jurou que a

matéria atrai a matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das

distâncias, e isso é verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol. Não

importa que, mais tarde, Einstein tenha introduzido a idéia de que o espaço se

curva quando próximo da massa de qualquer matéria – para nós, que vivemos

com os pés na Terra, o melhor é nos afastarmos das macieiras...

A Ciência é uma Arte, mas Arte não é Ciência. A Arte não dá conta de

toda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.

Estética e Neurônios

A Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que quando, em

cada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial - células do

sistema nervoso –, esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como

bytes de um computador, armazenando informações estáticas. Eles não se

12 Quando, através do Amor ou da Arte, penetramos na unicidade de um Ser, penetramos no

Infinito. Seria tolo imaginar que o Infinito seria apenas infinito para fora e para longe... Se é

verdade que o Infinito é, ou existe, não pode tão-pouco ter limites para dentro: o Infinito não é

apenas Infinito para além das estrelas e das Galáxias, mas também para dentro de cada átomo

do nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente igual ao infinitamente pequeno. O

Infinito destrói os conceitos de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está muito perto porque

tudo é muito longe, e é pequeno por ser tão grande.

Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas e de Sistemas

Planetários, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no mesmo

erro que Parmênides (515 A.C. - ?), o filósofo grego que afirmava que o Universo era infinito

em todas as direções e, portanto, teria um ponto de partida, e seria esférico... Ora, se começava

em um ponto determinado e tinha uma forma precisa - a esfera - seria finito, pois a forma é o

limite do Ser com o Não-Ser e, como sabemos, o Não-Ser não é... Não é mesmo?

Toda unidade é múltipla, em todos os sentidos e em todas as direções – isso é o Infinito.

Os Conjuntos conjugam Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo (o indivisível)

divide-se em prótons, nêutrons, elétrons, etc. Cada próton... cada quark... cada antiquark...

cada penta-quark... O Infinito é a vertigem do pensamento!

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esgotam nem se repletam - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!

Ao contrário dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que

se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens

simultâneas - sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais - enriquecendo suas

funções e ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redes

cada vez maiores de circuitos conjugados que nos fazem lembrar outros

circuitos, estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenham

alguma semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.

A imaginação é a memória transformada pelo desejo
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